Quando Grada Kilomba (Lisboa, 1968) > psicanalista, filósofa, escritora e artista multidisciplinar (como melhor se define), teve sua biografia reduzida por “uma série de instituições” como a “única estudante negra na universidade e que ganhou uma bolsa e ir para a Alemanha” — ela mudou-se para Berlim em 2008, para cursar o doutorado em Filosofia. E é justamente na luta contra essa redução que a obra de Kilomba está centrada. Descolonizar é o verbo que ela, com origens em São Tomé e Príncipe e em Angola, mais conjuga.
“Como artista negra, todo o teu percurso desaparece muito rapidamente. E há um certo populismo em reduzir tua biografia a um roteiro quase de telenovela, uma coisa bem sensacionalista, que não explica quem tu és, nem a complexidade do teu trabalho”, reflete, em uma de suas instalações na Pinacoteca, com a fala pausada, em um tom de voz que é quase um sussurro e que transmite, ao mesmo tempo, firmeza e serenidade. Uma semana depois da conversa com a jornalista Joana Oliveira, em julho, Kilomba tornar-se-ia a autora mais vendida da Flip 2019 (Festival Internacional de Literatura de Paraty, Brasil), com Memórias da Plantação (Cobogó), em que narra histórias de racismo cotidiano.
O livro é um exemplo de seu trabalho híbrido e interdisciplinar: o texto surgiu com um formato acadêmico e transformou-se a ponto de ser adaptado para o teatro. “Nós temos uma noção muito patriarcal e fálica do que é o conhecimento. Fazemos muitas coisas, mas há uma hierarquia: aquilo que está ligado à academia é o verdadeiro conhecimento e a verdadeira profissão. Depois, nós nos especializamos numa coisa, depois fazemos um mestrado, um doutorado… É uma coisa bem fálica que vai crescendo, crescendo, crescendo. Eu acho a coisa é muito mais cíclica, mais circular, em que nosso conhecimento atravessa muitas diferentes disciplinas e está em diálogo com diferentes formatos”, defende. Para Kilomba, o saber e a arte também são territórios de descolonização.
A artista considera três dimensões intrínsecas ao colonialismo: a marginalização de certos corpos e certas identidades; a capitalização da terra, da natureza, do ambiente; e a militarização das relações humanas. “A política do colonialismo é a política do medo. É criar o ‘outro’, criar corpos desviantes e dizer que eles são assustadores e terríveis e que nós temos que nos defender deles como barreiras como passaportes e fronteiras”.
Desmantelar essas estruturas de poder, defende Kilomba, passa também pela linguagem visual e semântica. “Normalizamos palavras e imagens que nos informam quem pode representar a condição humana e quem não pode. A linguagem também é transporte de violência, por isso precisamos criar novos formatos e narrativas. Essa desobediência poética é descolonizar”, diz.